Entramos na Semana Santa, mas alguma coisa se perdeu ao longo do tempo. Há trinta anos estava certo de que não comeria no almoço outra coisa senão peixe. Na época odiava peixe, mas não tinha conversa, era questão de “vida ou morte”. Quebrar as regras alimentares desse período do ano poderia atrair maldição sobre nossa família. Então me virava como podia.
Era uma semana para um upgrade na religiosidade carcomida e embolorada. As preces eram mais intensas e freqüentes, a prática da esmola era mais pródiga, as visitas à igreja eram quase que diárias e, sobretudo, era um tempo de fisionomias abatidas para dar a impressão de maior piedade.
Não podemos esquecer a oportunidade de reunir a família dispersa para tomar muito vinho de péssima qualidade e nivelar as informações sobre lutas, dissabores e amenidades vividas por cada um.
Hoje eu adoro peixe, meu protestantismo de missão solapou a mística dos rituais (que pena!!!) e já não me desloco para a casa dos meus pais com outros irmãos. Entretanto o que me concerne de maneira especial é que a Semana Santa aponta para a Cruz. Não a cruz mineralizada em adereços com fins estéticos, nem a cruz amuleto ostentada no peito e nas paredes. Falo da cruz enquanto proposta de seguimento de Jesus. A cruz como marco e destino daquele que ousa caminhar na companhia do Galileu. A cruz que projeta sua incômoda sombra sobre aqueles que buscam a comodidade.
Esses deveriam ser dias de confrontar nosso cristianismo sem discipulado. Temos cara de cristãos, falamos como cristãos, nos vestimos como cristãos, freqüentamos lugares cristãos e nos denominamos como tais; só não seguimos a Cristo. Em nosso cristianismo não há lugar para o exercício da misericórdia que tanto marcou a trajetória de Jesus. Não temos tempo para interromper nossa vida demasiadamente atarefada para perguntar por quem nos tocou em busca da nossa ajuda. Não nos parece sensato desviar o foco do sucesso para conceder a um pai angustiado diante das cadeias do seu filho a oportunidade de contar a sua história. Não queremos ouvir.
O nosso cristianismo transformou-se numa proposta de vida cômoda. Ignoramos, convenientemente, os alertas de Jesus a respeito da realidade conflituosa que aguarda o discípulo. Confundimos paz com comodidade. “Deixo-vos a paz; a minha paz vos dou. Não a dou como o mundo a dá”. Com estas palavras Jesus ressaltou o abismo que separa os modelos de paz propostos. A paz que o mundo nos propõe é baseada na ausência de conflitos e completamente horizontalizada. São belas paisagens, natureza harmoniosa e relacionamentos pacíficos. A paz que Jesus nos propõe é baseada na reconciliação com Deus; portanto, prioritariamente verticalizada. É a transformação operada na realidade de homens e mulheres que passam de inimigos de Deus em seus amigos. Quem desfruta da paz do mundo ainda continua inimigo de Deus, pois o mundo odeia a Deus. Quem goza da paz com Deus, tem o mundo como um espaço hostil. O discípulo se sente desconfortável na realidade presente.
O nosso cristianismo perdeu a veia revolucionaria e passou a ser mantenedor do status quo. Circula confortavelmente nos corredores do poder e, muitas vezes, a ele se alia para perpetrar injustiças e malignidades. Confundiu o antigo com o imutável, o difícil com o impossível, o doméstico com o público e a fé com a crença.
AFA Neto
AFA Neto