Acostumamos com as desigualdades. Até nos nutrimos delas para organizar as nossas vidas. Mas, aí vem Deus e nos lembra que somos todos iguais. Plurais, mas feitos do mesmo efémero pó das tempestades cósmicas. Ser diferentes não nos basta, queremos mesmo é ser desiguais, como se fôssemos seres nascidos de espécies distintas.
Não quero dar aos conceitos de desigualdades e diferenças as definições sociológicas, mas usá-los num sentido livre. Quando falo de diferenças estou me referindo a gênero, raça, compleição, idade, etc. As diferenças nos lembram que somos parte de uma realidade maior e que nunca a abarcamos em sua totalidade. Isso significa que falamos sempre por aproximação, tateando na busca de uma compreensão melhor. Uma criança vê o mundo de forma diferente do adulto e ambos tem verdades em suas visões. Olham para a mesma realidade e vêem coisas diferentes pois, afinal, miraram na mesma direção mas viram cores, movimentos e significados diferentes. Olhos de adultos e crianças podem ser descritos com as mesmas características biológicas, mas tem formas distintas de apreender a realidade. Por conta disso a criança vê o mundo como um imenso parque de diversões. Apesar dos adultos insistirem em transformá-lo em um campo de tortura, com sessões intermináveis de aulas, cursos de idiomas, ballet, natação e outro arsenal de atividades não escolhidas pelos interessados, a criança olha o mundo com olhos lúdicos. Os adultos por sua vez, olham o mundo como um campo de Guerra. O outro é uma eterna ameaça, não há tempo a perder, afinal, tempo é dinheiro e dinheiro é tudo que importa.
Desigualdade é um fenômeno social. Tem a ver com as oportunidades que cada sociedade concede aos seus integrantes. Riqueza e pobreza, abastança e privação, banquete e fome, opulência e escassez são desigualdades. Não existem desde sempre. Foram criadas e gestadas nas entranhas de sociedades excludentes e perversas formadas por seres humanos como eu e você, criados à imagem de Deus, mas pecadores e com propensão para o mal. As desigualdades se alimentam, não só da maldade inerente ao ser humano, mas de mecanismos que perpetuam essa realidade. Se alimentam de sistemas corruptos que tem como peças chaves em sua engrenagem políticos inescrupulosos. Se alimentam de políticos de direita que tem o próprio umbigo como seu deus e de políticos de pseudo-esquerda que tem no partido e na ideologia suas razões de viver.
A tragédia é que não respeitamos as diferenças e nos alimentamos das desigualdades. As diferenças nos incomodam e nos escandalizam. Lutamos, matamos, excluímos, rompemos laços, estigmatizamos e ferimos os diferentes. Passamos a vida tentando uniformizar as diferenças através dos nossos dogmas, das nossas interpretações, das nossas ideologias, sempre com boas intenções e quase sempre convictos de que somos os faxineiros de Deus.
As desigualdades nos movem. Almejamos a acumulação de bens mesmo sabendo que nossa pilhagem se dá às custas da privação de outros. Agradecemos a Deus por ter moradia em um condomínio fechado toda vez que assistimos o espetáculo dos horrores nos morros e favelas. Quando vemos a imagem da criança esquálida de cabeça e barriga grandes, nos comovemos apenas para orar a Deus para que isso nunca venha a acontecer ao nosso filho. Nunca paramos para pensar que essa realidade é perversamente cultivada por um sistema de distribuição de renda que produz desperdício em alguns países às custas de miséria em outros. Lutamos, oramos e trabalhamos desesperadamente para, no jogo das desigualdades, nos posicionarmos do lado de quem se dá bem.
Mas falei que Deus se encarrega de nos lembrar que somos todos iguais. A morte nos iguala e desconfio que o câncer também. É bem verdade que as condições de luta contra a doença mudam radicalmente de um José Alencar para um José da esquina, mas afinal, as células cancerígenas que atuam soberanamente no corpo de Estêvão, também atuam no corpo de Steve.
Pena que para uma imensa maioria, inclusive aqueles que se assentam semanalmente nas igrejas cristãs, nas sinagogas, nas mesquitas, nos terreiros, nos templos ou simplesmente aqueles que em nada acreditam, estes recados da divindade sobre nossa condição humana comum, caiam no vazio.
AFA Neto