De acordo com a nossa forma de mensurar o tempo hoje eu completo 42 anos de idade. Nasci no derradeiro mês do ano em que o homem foi à lua pela primeira vez (minha avó morreu a três anos sem acreditar!), os Beatles lançaram Abbey Road (em minha modesta opinião o melhor trabalho dos ingleses) e o Lançamento do jornal O Pasquim (talvez o mais intenso espaço de resistência cultural ao regime militar). Talvez por isso estive destinado a andar com a cabeça na Lua, sempre me refugiar na música (seja tocando ou ouvindo) e a ser perseguido por esse espírito de inquietação que tem me causado tantos danos. Para a maioria esses episódios figuram como peças de museu, para mim se confunde com a minha história. Destinado a viver com as lembranças do passado, insistindo em eternizá-lo, mas sabedor que qualquer estrada que tomar só me conduzirá para o futuro.
Contudo, a idade cronológica nunca caminha de mãos dadas com outras idades. Meu corpo que o diga. O invólucro parece ter uns dez anos a mais e o conteúdo orgânico eu prefiro nem saber. Mas o que destoa mesmo é a alma. Ah! Essa alma. Nunca sei que idade ela realmente tem. As vezes parece que ela sempre existiu e em outras parece que ela ainda vai nascer. Quase sempre ela brinca de se esconder só pra não ser percebida e confundir seu dono. Aliás, não sei quem é dono de quem; se eu a possuo ou se sou possuído por ela. Se digo pra ela que ser rejeitada é parte da vida e que é importante no processo de amadurecimento, ela se recusa a ser consolada por minhas palavras. Só quer chorar. Digo pra ela que outras almas igualmente rejeitadas estão por aí em busca de parceiras de rejeição. Para alegrar seu coração entôo um verso da música do Chico Cesar que diz que “cada um de nós é um a sós e uma só pessoa somos nós”. E por um momento ela estanca o choro.
Não é fácil lidar com a alma pois não sabemos qual a sua idade, nem do que ela realmente gosta. As vezes parece que adora carnaval e então corre para os muitos. Gosta das gargalhadas, das piadas, do barulho onde se fala muito e nada se escuta, dos rostos que se entreolham sem se deter para auscultar o coração. É como um refúgio para não pensar nas próprias desventuras ou no que poderia ter sido caso não fosse do jeito que é. Mas, as vezes é por pura fruição mesmo. Pelo desejo de sorver o prazer que esses momentos fortuitos promovem e de ser mais uma. Outras vezes, devo dizer, quase sempre, ela prefere a solidão. Ou pra ser mais exato, prefere ficar só comigo.
Cada um tem a alma que merece. Eu tenho uma alma tagarela, que não me deixa falar, que me torna refém da sua companhia e não quer me partilhar com ninguém. Luto exaustivamente contra ela para que me conceda o direito de poder conversar com outras pessoas e desfrutar de suas companhias, mas quase sempre não logro êxito. Tento explicar para ela que esse assédio me sufoca e que tem causado dificuldades com pessoas que também amo. Ela já chegou a presenciar inúmeras ocasiões onde minha esposa pede um pouco mais da minha presença, mas nem assim ela se sensibiliza. Já tentei até pregar pra ela e disse que o texto Sagrado fala que a alma de um místico tem “sede de Deus”. Que seria bom para ela anelar por outras coisas, mas ela, numa atitude profana e quase atéia retruca que a sede que ela tem mesmo é por mim. Que seu maior prazer é quando acordamos e ficamos deitados olhando para o teto, fazendo planos que nunca se realizarão. Que adora nossas caminhadas no calçadão onde estamos rodeados por muitos e não vemos ninguém.
Mas nem tudo está perdido. As vezes sinto que minha alma parece dócil e compreensiva. Pelo menos foi essa a sensação que tive hoje quando acordei e a convidei para um momento de oração por mais um ano de vida. Enquanto conversávamos os três (eu, ela e Deus) eu expressei minha gratidão por muita coisa boa que tinha me acontecido. Falei que não merecia uma mulher linda, dedicada e que me ama, e pude encontrar Diana. Falei que não merecia filhos tão inteligentes, lindos e obedientes como os que tenho e fui presenteado com Leo e Ainá. Disse que não merecia amigos sinceros e verdadeiros com os quais eu poderia ser eu e acabei por encontrar alguns. Falei que não merecia o sacerdócio, pois não possuía as qualificações mínimas para o exercício do mesmo e para minha surpresa Deus fez do ministério pastoral um espaço para me tratar e conceder-me muitas alegrias e sentido na vida. Ainda tinha muita coisa para agradecer, mas tive que parar pois tinha que trabalhar. Quando terminei, olhei para dentro de mim e pude ver minha alma enxugando uma lágrima que teimou em vazar pela lateral do olho esquerdo. Tomei coragem e perguntei:
- Quantos anos você tem?
E ela me respondeu:
- Na verdade não sei. As vezes parece que sou um bebê e outras vezes parece que sou uma velha rabugenta. A única coisa que sei com absoluta certeza é que nunca serei de mais ninguém alem de ti. Estarei com você para sempre.
Antes de sairmos para o dia de trabalho ela me seqüestrou por uns segundos só para me dizer:
- Feliz aniversário.
- Pra você também – respondi.
AFA Neto