Ainda convalescendo dois dias após a fase mais aguda de uma crise de labirintite, me arrisco a compartilhar algo à luz do que acabo de ler. Ao final, podem me acusar de não estar de posse plena de minhas condições intelectuais, mas ainda assim vou me arriscar.
Começo com uma confissão, dessas constrangedoras, mas que são necessárias ao bom relacionamento com sua consciência. Há mais ou menos um mês atrás fiz a assinatura da VEJA. Gostaria que todos soubessem que, para uma pessoa como eu, não é fácil publicizar uma coisa dessa, entretanto não poderia continuar “filando” aqui e acolá olhadas rápidas do conteúdo do semanário em questão. Já tenho assinatura de outros semanários e, para ser honesto intelectualmente, precisava ter acesso fácil à bíblia do conservadorismo. Desde então reservo uma parte das minhas segundas-feiras para a leitura destes semanários. Todos eles, em separado, deixam muito a desejar, mas se vistos em conjunto, podem informar, ainda que precariamente.
O problema é a ingenuidade do leitor. Primeiro, acreditar em objetividade jornalística é o cúmulo da alienação. Todas essas publicações estão a serviço de algo, desde interesses políticos, passando por visões de mundo, convicções religiosas, até desaguar no caudaloso rio para onde afluem todas essas águas: o Capital. Segundo, o estreitismo, quando não o exclusivismo das fontes. Ter acesso a uma única opinião não contribui para se formar uma ideia mais adequada de um suposto fato. É preciso ler o contraditório, se expor a ele, “brigar” com ele e ponderar sempre. Terceiro (para ficar só nestes três) e último, é preciso aplicar a tudo que lemos aquilo que alguns intérpretes chamam de hermenêutica da suspeição. Inquira o texto, pergunte a quem ele serve, quais interesses estão em jogo, que idéias ele que formar no leitor, etc.
Fico por aqui e vou direto à edição de VEJA desta semana. Se alguém duvidava da capacidade de algo se superar na tarefa de enganar, então renda-se agora diante da edição mais recente da nossa bíblia do ultra fundamentalismo. Para não lhe subtrair o prazer de fazer o exercício em casa, vou pincelar uns poucos exemplos a partir da matéria de capa.
Ao lado de um belo corpo feminino podemos ler em letras garrafais: ELA VENDEU A VIRGINDADE. Será que estamos virando uma sociedade em que TUDO SE COMPRA? Voto, Apoio Parlamentar, Cidadania, Justiça, Sangue, Rim, Bebês... Comovente a preocupação do semanário com a reificação da sociedade, não? Será que a VEJA se converteu dos seus maus caminhos e descobriu que a lógica do mercado e do máximo consumo pregados tenazmente e religiosamente por ela, não levaram a bom termo? Devagar com as conclusões. Logo na Carta ao Leitor o editor reafirma as convicções neoliberais da publicação numa colocação retórica quando fala sobre os limites do mercado como mediador das relações humanas. Na verdade é essa a tese deles. O que se poderá perguntar é: que tipo de relações são construídas pela lógica do mercado? Mais adiante, na reportagem principal, lemos no subtítulo à matéria “CRÍTICA A RAZÃO ECONÔMICA: O mercado é a melhor ferramenta para criar e distribuir riquezas” (grifo meu). Que bela peça ficcional. O mercado é um bom agente mediador de relações humanas pois ele, alem de criar, distribui as riquezas produzidas. Mais uma pergunta: Entre quais agentes esse “benevolente” mercado distribui suas riquezas?
A lógica capitalista desde sempre tende a reduzir tudo a bens para fomentar a engrenagem do mercado. Coisas, símbolos, emoções, pessoas, tudo entra no caldo do capital como uma única e mesma realidade: bens de consumo. Tudo está aí para ser comprado e vendido, sem limites, sem censuras, sem regulação. Qual a diferença entre vender o corpo diariamente para sobreviver e vender a virgindade. A diferença é que no primeiro caso trata-se de pessoas, em sua imensa maioria, excluídas da prometida distribuição de riquezas criadas pelo mercado, e que vê na prostituição uma forma viável (ao meu ver equivocada) de sobrevivência. Ao passo que no segundo caso trata-se de uma dondoca de classe média que vê uma ótima oportunidade de negócio ao mexer com as fantasias sexuais de pervertidos milionários. No fim das contas, é a mais límpida conseqüência de uma sociedade que optou por uma forma de vida gerida pela ganância, pelo vale tudo, pelo laissez-faire, pelo mercado total e irrestrito.
Antes de encerrar é preciso que manifeste minha preocupação com soluções religiosas para tal fato. Interpretar esse estado de coisas como conseqüência do pecado, mesmo sendo parte da verdade, não faz justiça ao todo da realidade analisada. Mesmo enquanto pecadores, Deus nos incumbiu de construirmos um mundo mais humano e justo. Muita coisa passa pelas nossas escolhas pessoais e coletivas. Se vamos aderir e reforçar essa lógica mercadológica que reduz pessoas a coisas ou se vamos resistir a tentação do lucro a todo custo e valorizar sobretudo o ser humano em sua relação com a natureza. Se veremos o corpo como produto e fim em si mesmo ou se entenderemos que o corpo é parte da criação divina e dimensão por onde muitas das ações de Deus se manifestam. Se vamos continuar vivendo como se tudo que existe seja essa frágil e efêmera vida que levamos agora ou se reconheceremos que Deus nos fez sonhar com uma realidade diferente desta e que somos, juntamente com o Criador, co-artífices desse projeto. Se vamos dar audiência à espetacularização da barbárie como no caso desse julgamento do desaparecimento da jovem Eliza Samudio ou se vamos reencantar a vida e entendê-la como sagrada como nos ensinou o Senhor Jesus.
Afinal, “de que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”
AFA Neto