Michel Foucault nos lembra que nos primeiros anos da idade moderna as autoridades citadinas amontoavam os loucos nas “naus dos loucos” e os atiravam ao mar. Eles (os loucos) não estavam de acordo com a ordem daquela época conforme pensada pelos poderosos. Eliminá-los do cenário era um grande servico à ordem pública e à humanidade.
Essa tem sido a lógica subjascente a todas as atitudes coletivas de pureza na história da humanidade. As bruxas na idade média, as inquisições católicas e protestantes, o genocídio nazista, os conflitos étnicos no leste europeu, todos tiveram um forte conteúdo purificador.
Bauman nos lembra que o contrário de pureza não é impureza mas “coisas fora do lugar”. O impuro é o que não se encaixa na ordem conforme estabelecida por quem detém o poder. A sociedade é pensada e estabelecida com a idéia de que cada coisa cumpre um papel definido na ordem social. Há o lugar da religião, da política, da economia; bem como há o lugar dos pais, do homem, da mulher, do branco, do negro, do evangélico, do católico, do praticante dos cultos afros, etc. Quando alguma coisa resolve sair do seu lugar provoca um desconforto pois, coloca em dúvida a organização conforme existia até então.
A maioria esmagadora da humanidade acha que a ordem das coisas em uma sociede remonta a Deus e à criação. Noutras palavras, por encontrarmos as coisas definidas como estão desde que chegamos ao mundo, achamos que elas sempre foram assim. A verdade porem, é que a organização social é uma construção do homem. É fruto de um longo processo de acertos e erros para fazer com que a convivência de interesses e mundos diferentes possa acontecer de maneira mais ou menos harmoniosa. Quando se trata de sociedade nada é eterno. Tudo teve início, aliás, vários inícios. É esse fato que é ignorado por aqueles que levantam bandeiras em favor da pureza (ou seria melhor dizer: das purezas?).
Os nossos dias são dias de intensa mobilidade. As coisas estão se recusando a permanecer nos lugares propostos pela sociedade moderna. Alguns atores sociais estão cansados de cumprir o script que a história recente lhes reservou. Negros não querem mais a sua condição subalterna, a mulher quer sair dos bastidores e ser protagonista, homossexiais querem o direito de serem tratados dignamente, evangélicos (no Brasil) querem um lugar ao sol nos centros de decisões políticas, etc. Os interesses são muitos e quase sempre divergentes.
Aqui, faço uma pausa para uma breve reflexão. Ouvi de vários líderes evangélicos frases do tipo: “agora é a nossa vez”, “essa é a nossa oportunidade de dar as cartas”, “agora nós estamos com o poder”. A Marcha da Família foi uma iniciativa na linha deste raciocínio. A pergunda que não quer calar é: O que Jesus faria em nosso lugar? Se os Evangelhos ainda são as fontes mais autorizadas para nos aproximarmos do Galileu, teremos que admitir que esta postura em nada se remete ao comportamento do Filho de Deus. Jesus andou por esta terra não em busca dos seus interesses, mas dAquele que o enviou. E Aquele que o enviou era a favor daqueles que eram maltratados na sociedade.
A Marcha da Família nada mais foi que um ótimo palanque para promover figuras desprezíveis como Silas Malafaia, Bolsonaro e alguns políticos oportunistas. A família precisa ser fortalecida e preservada sim, mas a família é o lugar onde nos deparamos com pessoas diferentes e não programadas. O mais importante é que nunca percamos de vista o amor que acolhe, restaura, mas não compactua com o pecado.
AFA Neto