"Conheço as suas obras: o seu trabalho árduo e perseverante, que não podes suportar homens maus... e tem suportado sofrimento por causa do meu nome. Tenho, porém, contra você o fato de ter abandonado o seu primeiro amor." (Ap 2. 2-4)
Em tempos de escassez de tempo e de energias gastas com a correria em busca do último item de consumo em exposição no mercado, ter uma comunidade caracterizada pelo labor constante dos seus membros, é um imenso privilégio. Noutros tempos a Igreja em Éfeso era assim.
Em dias de frenesi constante na busca pelo guru da moda não importando se ele ou ela fala em total dissonância em relação à Palavra de Deus, ter uma comunidade de gente sóbria, ponderada e que tem a coragem de se recusar a aderir à tendência, é um grande avanço. Noutros tempos a Igreja em Éfeso era assim.
Em época de hedonismo desenfreado e de farta disseminação do conceito de que sofrimento é pecado, ter uma comunidade que descobriu que o sofrimento decorrente da perseguição por manter firme sua confissão de fé, deve ser visto como privilégio, é uma grande bênção. Noutros tempos a Igreja em Éfeso era assim.
Mas existia um “porém” que transformava todas as qualidades em defeitos, bênçãos em maldições, o elogio em reprimenda, a celebração em lamento, o doce em amargo, o riso em pranto, o dia em noite. Faltava a essência do ser divino, a realidade maior e que a tudo deve permear e impregnar. Faltava a capacidade de abrir-se para o outro, mesmo que ele pense e aja diferente de mim. Faltava a capacidade de discordar e não aderir sem, contudo, declarar guerra e constituir inimizades. Faltava o elã que marca a experiência do deslumbramento ante o desejado.
“Tenho, porém, contra você o fato de ter abandonado o primeiro amor”. Que expressão bela e cortante, poética e confrontadora que o texto sagrado usa para descrever a experiência do divórcio sob o mesmo teto. Aliás, essa metáfora da relação conjugal para referir-se ao relacionamento entre Deus e o seu povo é farta no livro do Apocalipse. Como ele descreve com perfeição o que acontece muitas vezes em nossa caminhada com Deus. Conheço inúmeros casais que já se divorciaram mas ainda vivem sob o mesmo teto. E não pense que falo de convivências infernais, de arranjos sociais, ou manutenção de aparências. Falo de casais que se respeitam, são fieis, cumprem com os reclames sociais da vida matrimonial e constituem belas famílias, mas perderam o primeiro amor.
A igreja em Éfeso tá para o relacionamento de Deus com o seu povo como homens e mulheres estão para o casamento descrito acima. O que, a princípio, foi elogiado e poderia alavancar uma comunidade relevante, acabou por transformar aquele grupo num ajuntamento de pessoas áridas e desprovidas de alegria pela vida. O labor constante da comunidade, se transformou em ativismo vazio e extenuante, por falta de amor. A fidelidade doutrinária e firmeza teológica, se transformaram em fundamentalismo impiedoso e perseguidor do discordante, por falta de amor. A capacidade de resistência e de sofrer pelo nome do Senhor se transformaram em masoquismo espiritual e em estoicismo que desembocaria em autoflagelação, por falta de amor.
A receita não guarda surpresas. Voltar ao ponto onde o desvio ocorreu e refazer a rota. Só assim é possível reviver o primeiro amor. Não adianta tentar o conserto a partir de onde estamos, só há uma possibilidade: volte ao início e trilhe outro caminho. O caminho proposto por Deus. O caminho pavimentado pelo amor e que mantém vivos o ardor e a volúpia, o desejo e o tesão. Caso contrario, todos os esforços serão destituídos de sentido, pois se não tiver amor serei como “o bronze que soa ou como o címbalo que retine...”.
AFA Neto