Poucas coisas são tão constrangedoras quanto estar trancado em um elevador em presença de alguém estranho. E como o conceito de estranho pode ser remetido para qualquer um com quem não tenhamos intimidade, então podemos dizer que nos vemos nesta situação inúmeras vezes no dia. O vizinho, a quem conhecemos a fisionomia, mas só trocamos palavras de cumprimentos formais e desinteressados, é um constante estranho. Dividimos aquela câmara de aço sem saber onde colocamos as mãos, para onde olhamos, se nos arriscamos a começar um diálogo, etc. A maioria opta pelo silêncio e pela cabeça baixa até que a porta se abra e promova uma verdadeira libertação. Outros preferem fingir que falam ao celular, que dão os últimos retoques na maquiagem diante do espelho e fingem descontração. O elevador, neste sentido, é um confronto à impessoalidade pós-moderna.
Mas pode ser também um provocador de crise de identidade. Isso me veio à mente no último final de semana. Saíamos de casa eu, minha esposa, nossos dois filhos e uma sobrinha. Éramos, portanto, cinco pessoas, certo? Não, se o conceito de pessoa for o do elevador. É o seguinte: Entramos no elevador no décimo sétimo andar e dois andares abaixo entraram mais duas pessoas. Porta fechada, elevador descendo e no décimo primeiro andar ele para e entram mais três pessoas. Sinal vermelho! Numa das laterais da cabine podemos ler: Capacidade de 8 pessoas ou 640Kg. Logo se estabeleceu uma conferência. Minha filha, traumatizada por uma fatídica experiência de ter ficado presa em um elevador, logo vaticinou: tem muitas pessoas. Com ela, outros concordaram. Uma senhora se opôs ao veredicto e aventou uma outra lógica: “Temos aqui três crianças que, se somado o peso delas, não chaga a 80Kg; logo, as três podem ser contadas como apenas uma pessoa”.
Depois de certo constrangimento as três pessoas entraram e seguimos viagem para, onze andares abaixo, sairmos do elevador com nossa identidade em conflito. Afinal de contas, criança é ou não uma pessoa? A resposta é: criança é uma pessoa quando analisada por qualquer ciência que arrisque uma definição do conceito de pessoa. Contudo, se essa mesma criança estiver em um elevador lotado, o seu ser pessoal estará condicionado ao seu peso.
Isso que o elevador provoca, já foi experimentado em outras épocas com relação a outros seres humanos. Por exemplo, na Roma antiga, o conceito jurídico de pessoa excluía o escravo da posse deste status. O escravo era ser humano, mas não era pessoa. Para ser pessoa era preciso estar de posse de certa liberdade social que era vedada ao escravo.
Da mesma maneira, no universo “elevatoriano”, para ser pessoa tem que se ter cerca de 80Kg. Admite-se até 60Kg e muito mais que os 80Kg previstos desde que seja um adulto. No elevador a lógica é: vale quanto pesa.
Tem uma vantagem nesse troço; esse ideal de magreza, típico dos nossos dias, fica relativizado. O elevador, se você for muito magro, põe em dúvida a sua condição de pessoa. Se for muito gordo põe em polvorosa seus companheiros de jornada. Portanto, nem anorexia nem obesidade tem lugar na estética “elevatoriana”.
Pensei numa última coisa. Para todos os efeitos, pessoa é um conceito do mundo civilizado e está ligado às questões morais, éticas e jurídicas, típicas da civilização. A teologia tem sofrido há milênios para explicar a relação do conceito de pessoa em alguns de seus dogmas. Como explicar o dogma da dualidade de essências sem, contudo, duplicar a personalidade do ser Jesus? Mistério.
O maior desafio está mesmo em explicar o dogma trinitário. Como explicar a existência de três pessoas subsistindo em uma única essência divina? Desde tempos imemoriais os teólogos recorreram a metáforas para tentar dar uma ideia desse mistério. Já se usou as figuras do triângulo, do trevo de três folhas, de uma suposta constituição tripartite do ser humano em corpo, alma e espírito, e por ai vai. Agora podemos usar também a metáfora de três crianças em um elevador prestes a lotar. A criança é uma pessoa dotada de todas as faculdades que caracterizam um ser integralmente pessoal. Contudo, naquela circunstância específica, devido ao seu baixo peso, as três são contadas como apenas uma. Não perdem nenhuma das suas faculdades inerentes, mas não podem ser contadas como três, devido ao baixo peso. Como o critério do peso é decisivo para quantificar as pessoas, somando o peso das três e não chegando a 80KG, concluímos que só podemos quantificar uma pessoa. E assim os pregadores terão mais uma forma de metaforizar a trindade para nossa cultura, usando símbolos que são da nossa época, além do som três em um.
Desnecessário dizer que tudo isso é mera brincadeira. Fica apenas o registro da minha saga “elevatoriana” e das minhas viagens mentais.
AFA Neto
Olá! Sou Cecília, namorada do Aldo, ele me passou seu blog! Amei... Gostei mto do texto "elevatoriano" rsrs. Continuarei fazendo visitas por aqui, viajando por caminhos diferentes e ampliando meus horizontes! Fica na paz do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Até mais..
Neto,
Seu "elevatoriano" levou-me a pensar na ditadura do tempo; a efemeridade social tratada por Baumam. Na sua na câmara textal, pessoas são reduzidas e a lei tácita do silêncio violada, redirecionando o ir e o vir, retomando medos e interrogações.
Olá Ceci,
Agradeço pela visita e pela disposição em continuar visitando o nosso blog.Abração em vc e no Aldo.
Oi Elionai,
Seus comentários sempre oportunos e reflexivos. A Inspiração do Baumam é imprescindível para entendermos esse nosso tempo.
Abração
Kharis kai eirene
Conheci o seu blog por meio de um anúncio do google em meu blog.
Achei muito intrigante e interessante. Estarei aqui outras vezes.
Esdras Bentho
Caro Esdras,
que prazer receber a sua visita. O sentimento que vc teve ao ler o blog "intrigante e instigante" é a razão dele existir. Em dezembro estarei lançando o Livro "CANTEIRO DE INQUIETUDES - CRÔNICAS E REFLEXÕES". Avisarei data e local.
Certamente farei visitas ao seu blog.
Abração
Muito boa essa crônica urbana: sanduíche de humor e inteligência.
Longa vida a esse propósito!
Valeu grande Dico. Um incentivo desses vindo de vc é gratificante.
Abração
meu querido pastor,
maravilhoso saber que além de ser este pastor maravilhoso es também um grande filosofo. muito bom ler e refletir após suas reflexões.
um abraço grande e que o Senhor Jesu continue inspirando suas reflexoes.